Marcha Zumbi +10

Espaço para divulgação da Marcha Zumbi +10, que ocorrerá no dia 16 de novembro de 2005, junto aos meios de comunicação, militância, mundo acadêmico entre outros.

10.19.2005

Marcha Zumbi +10 – Protesto e Autonomia, ou que se guardem os tubinhos e terninhos


Por Wania Sant’Anna

Fizemos, como há séculos, a parte boa da história. No último século, nenhum outro segmento organizado da sociedade civil brasileira logrou instituir uma data nacional de protesto e reclame à consciência nacional – nenhum. Somos únicos e absolutos!

O 20 de Novembro é uma realização social e política negra e uma realização política de dimensão incomparável. Incomparável porque retorna à história ancestral de homens e mulheres que, escravizados, não perderam o senso de dignidade e, portanto, lutaram como puderam para manter um ideal máximo: a liberdade! Nenhum outro sentimento pode ser mais caro ao ser humano do que o exercício de sua liberdade, a liberdade de sua comunidade, a liberdade de realiza-se como ser humano.

Talvez tenha sido por isso que, nessas últimas três décadas – período que marca a organização política contemporânea da população afro-brasileira – poucos ousaram diminuir a importância e o valor do Quilombo dos Palmares e suas lideranças. Poucos resistiram a idéia de render-lhes as justas homenagens e relembrar sua história como merecedora de todas, todas as glórias. Palmares e outros quilombos são na história do Brasil o que há de melhor a relembrar como resistência e exemplo de dignidade. Palmares e os outros quilombos são o que há de melhor para não deixar esquecer sobre a história da escravidão no Brasil.

Se Palmares e outros quilombos fizeram a sua parte, cabe a nós, na atualidade, fazer a nossa. Palmares e os outros quilombos foram, ao seu tempo, protesto. Cabe a nós relembrar-lhes a história e manter viva a idéia e o ideal de protesto – comemoração/protesto. E, na minha opinião, é isso que representa ocupar, em protesto, as ruas para sua justa homenagem.

Encontros, seminários, conferências, audiências, assinaturas de planos, acordos e protocolos não são protestos. Têm importância e valor, mas não são protestos. Manifestações públicas são protestos e parece bastante transparente que os afro-descendentes no Brasil têm motivos, de sobra, para protestar.

No caso da Marcha Zumbi +10 – definida para o dia 16 de novembro – parece também bastante transparente que ela é resultado de uma decisão equilibrada e respeitosa de ativistas e instituições que, por muitos anos – ou toda a sua vida adulta, têm dado o melhor de si para que o preconceito, a discriminação racial e o racismo sejam banidos como prática da vida nacional – em todas as instâncias. Isso tanto é verdade que, na sua primeira reunião de organização (julho de 2004), ninguém (ativista ou instituição) ousou negar-lhe a importância e a necessidade. Ninguém ousou pensar que a Marcha não devesse ser feita no mesmo local de 10 anos atrás: na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. O que se passou e vem se passando depois são as disputas que, no mínimo, maculam o respeito que devemos manter por nossas decisões e história políticas.

Naquela ocasião, para refrescar a memória de muitos e informar aos demais, teve-se a preocupação de verificar a “folhinha”, dar-se conta que o 20 de novembro, em 2005, aconteceria em um domingo e que, neste caso, o ideal era realizar uma Marcha em data anterior ao Domingo 20 de Novembro. Agora, quando somos chamados a tomar posição, parece digno, não deixar passar, literalmente, em branco as decisões tomadas em uma reunião tida, ninguém duvidou, respeitável e responsável. Respeitável e responsável porque foi convocada, exclusivamente, para este fim, para esta finalidade. Respeitável e responsável porque, tendo esta finalidade, foi assim informada ao país e, em especial, às organizações e ativistas da luta anti-racista no Brasil.

O nível de observância e críticas lançadas sobre essa iniciativa, especialmente às instituições e ativistas dedicados a sustentar o dia 16 de novembro como data ideal para a realização da Marcha Zumbi +10, marcará a todos nós por alguns anos. Veladas ou diretas, a desqualificação, as ameaças e os boicotes foram lançados de forma a construir um cenário de terra arrasada. Não por acaso, transparece, restando menos de 30 dias para a sua realização, a marca forte da autonomia como um dos pilares éticos da Marcha Zumbi +10 no dia 16 de novembro. Autonomia frente ao quê?

Autonomia como direito fundamental à organização da população afro-brasileira para a defesa exclusiva dos seus interesses. E por defesa exclusiva sublinha-se a insubordinação a qualquer outro interesse de grupo e/ou problemática. Se para a população afro-brasileira, como bem sabe a militância anti-racista, o preconceito, a discriminação racial e o racismo são os entraves mais essenciais à realização dos seus direitos humanos – e, portanto, obstáculo à sua cidadania plena – não há porque se subordinar a qualquer outro interesse de grupo e/ou problemática. Então, autonomia frente a qualquer insidiosa tentativa de diminuir esse ideal, e macular esse pressuposto ético fundamental à luta anti-racista.

Não fossem todos esses os motivos para me convencer da justeza do dia 16 de novembro como a data de realização da Marcha Zumbi +10, há meses um outro motivo se somou. Dezesseis de novembro é data ideal para dizer ao país, à nação, que a República que temos hoje está longe, muito longe, de ser a Nossa República. A República proclamada em 15 de Novembro de 1899 traz, para a população afro-descendente no Brasil, a mesmíssima seqüela do dia 14 de maio de 1888 – o não-lugar, a desqualificação e a desclassificação da dignidade afro-descendente. Povo forte, transformado em estorvo. Povo criativo, transformado em folclore. Povo forte, eternamente lembrado como ex-escravo e, jamais, tido como escravizado. Povo levado a ter vergonha de seu passado, de sua origem. Povo constantemente submetido às práticas insidiosas de rejeição – um problema, sempre; jamais, a solução.

Na versão século XXI de solidariedade e engajamento às causas sociais, é inimaginável não desfrutar da imagem de uma menina ou um menino negro beneficiados com a melhor ação social do momento. Fica então a pergunta que não quer se calar: o que fariam as boas almas nacionais, não fosse essa porção inestimável de pobres pretos para cuidar e, assim, sentir-se bem e realizados em seu clichê de “responsabilidade social”? País inimaginável esse que, ainda na pobreza, possamos dar aos “bem sucedidos” algo mais “elevado” que a sua satisfação material, damos-lhes, também, a “satisfação moral”.

País inimaginável esse que, para obter o que nos seria óbvio como direito, como cidadãos e cidadãs, tenhamos que nos preocupar em atender, também, aos interesses da população branca e pobre. Em duas décadas de luta pela desagregação dos indicadores sociais por “cor/raça”, ninguém lembrou de justificar a esta desagregação em nome dos interesses da população branca e pobre. Fizemos, assim, mais uma graça: descobrimos, com os nossos esforços (e intermitente ridicularização de nossas propostas) que, no Brasil, existem, também, brancos pobres. Portanto, também aqui, na situação de pobreza, esses não devem ser esquecidos – ou melhor, precisam ser, forçosamente, contemplados. É justo? Sim, é justo.

O que não é justo é que os benefícios sejam colhidos sem que sejam nomeados os autores das propostas. O que não é justo é que passemos, ainda que na situação de pobreza extrema, a ter que cuidar do bem-estar de todos, quando do nosso bem-estar só se têm ocupado alguns poucos – notadamente, nós os pretos, os ativistas anti-racistas, os chatos, esses perigosos personagens unicamente interessados em instituir o racismo ao contrário, os que não compreendem, por pura ignorância, o valor de viver em um país onde o racismo é antes, e acima de tudo, “cordial”. O princípio da distribuição, curioso, só é lembrado quando parece haver, no fundo, algo que possa elevar, de fato, a condição dos afro-descendentes. E isso não é nada justo!

Enfim, 16 de novembro, como protesto, como autonomia, como direito inalienável à livre organização da população afro-brasileira. Enfim, 16 de novembro como expressão de nosso direito de viver em dignidade, de exigir seguridade às nossas famílias, às nossas comunidades, de respeito à nossa ancestralidade. Dia 16 de novembro pela Vida, pela Ética e pela Verdade Histórica.

Os tubinhos e os terninhos – fotos e sorrisos – são para outra ocasião, agora é chão!

*Historiadora, 44 anos, feminista e ativista negra. Colaboradora do Jornal Irohin e presente à primeira reunião de organização da Marcha Zumbi+10 (Brasília, julho de 2004).

10.16.2005

Entrevista com Edson Cardoso

Editor do jornal Irohin, ativista político do Movimento Negro, Edson Cardoso é uma das principais lideranças do Movimento Negro na atualidade. Com opiniões firmes e convicto do que afirma, nesta entrevista Edson nos dá um panorama do cenário político em que as Marchas do dia 16 e 22 de novembro se configuram.

Estamos a praticamente um mês da Marcha Zumbi +10 do dia 16 de novembro. Que avaliação você tem nesse momento? E quais as suas impressões sobre o que motiva as pessoas que estão na Marcha Zumbi +10 no dia 16?

Minha avaliação é a de que o pior já passou. Refiro-me ao impacto sobre a militância dos esforços de desestabilização da Marcha. A militância aparou bem os golpes e trabalha para vir a Brasília no dia 16 de novembro. Eu diria mesmo que os ventos começam a soprar a nosso favor. Há um crescente entusiasmo com a oportunidade e a necessidade de afirmação da autonomia do Movimento Negro. Nesta reta final, a mobilização deve se ampliar e fortalecer. O que motiva as pessoas, afinal, é a luta contra a opressão racial e o racismo. Cheguei a Salvador no dia 28 de setembro para uma reunião com o Coletivo de Entidades Negras. O Coletivo reúne 60 entidades e, por unanimidade, apóiam a Marcha de 16 de novembro. A edição do jornal “A Tarde” daquela quarta-feira trazia na capa as fotos de negros assassinados: 635 pessoas assassinadas nos primeiros oito meses de 2005, quase três mortes violentas por dia, a maioria esmagadora de pessoas negras. Não se conhece uma única palavra do governo federal sobre o extermínio de negros no Brasil. Silêncio e cumplicidade. Já protocolamos uma entrevista com o Ministro da Justiça no dia 16 de novembro, para que receba entidades de Movimento Negro. O que motiva a militância é a luta pelo direito à vida. Vamos encher a Esplanada de cruzes, que simbolizem as mulheres e os homens negros assassinados.

Você poderia fazer um rápido paralelo entre a Marcha de 1995 com esta de agora – seus signos e significados, já que em 1995 foi possível construir “unidade”, pelo menos de data e de documento, entre as diferentes correntes de opinião do movimento negro?

Em 1995, o setor que, hoje, contrapôs o dia 22 para esvaziar o dia 16, na época não queria a marcha no dia 20. Lembro que na plenária de São Paulo tive que fazer três inscrições para defender a data do 20 de novembro. Flavinho e sua turma queriam o 20 para organizar um seminário internacional em São Paulo. Montou-se uma executiva gigantesca, da qual faziam parte até três centrais sindicais. Na primeira reunião, também em São Paulo, compareceram quatro pessoas na parte da manhã. Na parte da tarde fiquei sozinho. A tal executiva só apareceu na rampa do Palácio do Planalto, no dia 20 de Novembro. Os sindicatos e os partidos de esquerda envolveram-se à parte, num esquema próprio, e afirmo que a motivação principal era a oposição ao governo FHC e não a luta contra o racismo. Hoje, esse pessoal é governo e com a ajuda da Abin fazem o que podem para desestabilizar a marcha. Não houve unidade em 1995, havia circunstâncias conjunturais que motivaram até a presença de Lula na marcha. A esquerda tradicional, essa cujo lastro histórico resume-se à passagem do feudalismo para o capitalismo na Europa, e ignora tudo sobre história do Brasil, não constrói unidade com o Movimento Negro. Ou você topa repetir as palavras de ordem deles, ou você é um inimigo execrável. Não houve unidade de documento, isso é ficção histórica. Sem a participação efetiva do Geledés e do Ceert não teria havido nem documento, para você avaliar bem a dimensão do boicote que já rolava em 1995. O Vicentinho, na época, teve um papel bem decente e conseguiu “destravar” o jornal da marcha, que editamos e a turma segurou até quase a véspera da marcha. Na Esplanada, na hora da marcha sair, tive que bater boca com uma senhora, dirigente da CUT, para que retirassem a bandeira da central que haviam pendurado na frente do caminhão de abertura, uma provocação inaceitável..

Por que a Marcha Zumbi +10, segundo a visão de quem marchará no dia 16? Quais as diferenças de princípios e de perspectiva de futuro entre uma proposta e a outra (do dia 22)?

Por que a Marcha? Ora, porque precisamos fazer política, não é mesmo? Como alterar condições materiais de existência tão adversas sem fazer política? Há uma militância negra quase que se especializando em derramar lágrimas sobre as estatísticas do Ibge e do Ipea. Literalmente choram sobre o leite derramado. Temos dito e repetido no jornal Ìrohìn que o racismo oprime e mata, de um lado. De outro, o racismo nega que suas vítimas possam se organizar para enfrentar as desigualdades raciais e a exclusão extrema. Nega o sujeito político. A marcha é a afirmação do sujeito político, coletivo, que se ergue para reivindicar seus direitos de cidadania. Nós não reivindicamos para os outros resolverem, fique isso bem claro. Queremos participar, decidir, sem tutela. Queremos direitos políticos plenos. O pessoal que aceita a subalternização nos partidos e em outras organizações cumpre o mesmo papel dos jagunços para o latifúndio rural. O grande sonho dessa gente é transformar o Movimento Negro numa UNE qualquer da vida, submetida ao Comitê Central. Não vão conseguir. A disputa real é esta, não as datas. Não querem, nunca quiseram marcha. Estão indo no dia 22 a contragosto, preferiam estar postos em sossego, desfrutando da adesão ao governo federal. Foram obrigados a contrapropor, não tiveram saída. Estão engasgados com a hegemonia.

Hoje podemos dizer que surgiram quatro linhas de opiniões em relação às Marchas: a que apóia o dia 16; a que fecha com o dia 22; a que não vai em nenhuma das marchas e aqueles que irão nas duas. É complicado, não? Como você analisa isso?

Tem muita manha nisso aí. Pra começar, há uma proposta de Marcha, construída há dois anos. Há também uma contraproposta vinda de setores atrelados à base do governo. E há outros interesses contraditórios, atrelamentos de toda ordem. Alguns sempre traíram. A tradição da traição. Não podemos esquecer também das almas penadas, que vivem fazendo assombrações na internet. Um espanto. Dormiu na prestação de contas do centenário da abolição e acordou agora. Tem os fantasmas de batina, arrastando correntes e tudo. E a Abin, o que está fazendo? Não sejamos ingênuos.

Analistas da política têm expressado a opinião que serão duas Marchas Zumbi +10 porque no momento estão nítidas duas concepções de Marcha. Qual a sua opinião sobre isso? Quais os prós e os contra de se ter chegado a este estágio na luta anti-racista brasileira, considerando-se a conjuntura nacional?

Sobre a existência de duas concepções não temos dúvidas, são campos muito distintos. A tutela das organizações brancas se faz sempre numa direção que nega validade e alcance à luta do Movimento Negro. Não combatem o racismo, mas a existência e a legitimidade do Movimento Negro. É de estarrecer isso. Sem o horizonte da conquista do poder político, o que nos resta mesmo? A fragmentação, a pulverização, a competição intensa. Quando o MST marcha, marcha o MST. Quando os negros decidem marchar, por mais instâncias de decisão coletiva que criem, tudo fica fulanizado e beltranizado. É a marcha de fulano, de beltrana. E tome desqualificação e calúnias e difamação. Ameaçamos o latifúndio da política, os proprietários soltam os jagunços pretos em cima de nós.

Mas, veja, nesta conjuntura, tudo isso ficou mais evidente para um número maior de pessoas. Do Maranhão ao Rio Grande do Sul, nas cidades que tive a oportunidade de visitar desde o ano passado, e não estive apenas visitando capitais, fiz palestras em Cacha-Pregos, com gente maravilhosa na Ilha de Itaparica, e em assentamentos de sem-terras no Distrito Federal, posso assegurar que um número crescente de negras e negros, de todas as idades, querem ir além das denúncias pontuais e fortalecer uma visão mais ampla, estrutural, do papel do racismo na sociedade brasileira. Cresce a consciência de que o muro das desigualdades, tijolo por tijolo, só permanece de pé, naturalizado, porque foi fixado com o cimento do racismo. Sem a prioridade do combate ao racismo não construiremos uma sociedade justa e democrática – ao menos no Brasil, onde a classe foi determinada pela raça.

Lamentamos, na verdade nem sei se lamento muito, que os setores que arrotam “politização” estejam completamente dominados nos sindicatos e nos partidos, realizando no dia-a-dia pequenos serviços ordinários para garantir o reconhecimento de seus senhores brancos.

Em sua avaliação há avanços e/ou retrocessos para o enfrentamento do racismo no Brasil comparando-se os processos de construção da Marcha de 1995 com a Zumbi +10?

Avançamos, em termos. Percorremos o país e há Movimento Negro em praticamente todos os municípios, não é pouca coisa isso, a interiorização da luta. Mas os partidos ali de olho, vigiando, prendendo e soltando, rédea curta. Há conselhos, há secretarias, há uma incipiente institucionalização da temática racial. Mas ainda de pouca ou nenhuma efetividade. Muito evento, muita conversa atirada ao vento, despolitização, pouca penetração na base negra.

O dinheiro é pouco ou nenhum. Quando existe algum, se gasta mal, como é o caso da Seppir. O Brasil Quilombola é uma piada. Estive num assentamento no Sul da Bahia, próximo a Ilhéus. A maioria dos assentados era constituída de negros. Já erradicaram o analfabetismo, duplicaram a produção de cacau, construíram parceria com uma porção de Ongs, tem a participação do Incra. Lá não tem Seppir, a coisa vai. Nada parecido se tentou com as chamadas comunidades quilombolas. Agora, veja os gastos de viagens e eventos e veja com quem mesmo se tentou uma parceria digna desse nome. Na saúde, já temos bons diagnósticos desde os tempos de FHC. O problema é chegar na ponta, no posto de saúde da periferia onde estão os negros sem acesso a esgoto e água tratada. O pouco dinheiro que está no orçamento se dissolverá nas atividades-meio.

No Congresso, nada caminha, o tema não foi incluído nas agendas partidárias. Os partidos, que deveriam institucionalizar as demandas do MN, não o fazem. A Marcha é uma tentativa de pressionar diretamente as instituições, os gestores públicos. No Congresso, a chamada bancada negra é por enquanto um esboço de pouca efetividade.

Refinamos os diagnósticos, as estatísticas das desigualdades raciais, há algumas conquistas no acesso ao terceiro grau e pouco mais. O Judiciário é intocável, a polícia e os grupos de extermínio idem. A mídia continua branquésima e, maioria dos analfabetos, continuamos vegetando na informalidade e na faixa de até três salários mínimos. Os postos de gasolina exigem segundo grau e referências e nós não terminamos o primeiro grau.

No plano dos direitos culturais, a Lei 10.639 é, por enquanto, uma manifestação de nossa vontade política, sem nenhuma inserção institucional. A Capes e o CNPq, por exemplo, nem sabem que a lei existe. São órgãos que poderiam estar assegurando investimentos na formação de professores e pesquisadores. As licenciaturas continuam formando docentes sem lhes permitir o acesso aos conteúdos da nova diretriz da educação brasileira. Um escândalo. Uma proclamação de direitos que não se efetiva na prática. E continuamos sem poder manifestar livremente nossas opções religiosas – perseguidos e humilhados.

Afinal, qual das duas “coordenações da Marcha Zumbi +10” colocou a idéia na rua, na medida em que ambas se dizem idealizadoras de uma Marcha Zumbi +10?

Sobre isso não há dúvida, há distorções e uma ação deliberadamente maldosa. A proposta da Marcha circula desde 2003. Para ser exato, ela foi tornada pública no Geledés no dia 18 de maio de 2003. Um conjunto de entidades trabalhou para construir a reunião de 3 e 4 de julho de 2004, no Hotel Manhattan, em Brasília. Participaram 41 pessoas, representando entidades de todo o Brasil. A reunião foi gravada, filmada, fotografada e divulgada no Irohin, edição de agosto e setembro de 2004. A questão da data foi colocada por mim nesta reunião. Vinte era feriado, sugerimos que fosse realizada antes.

Algumas pessoas afirmam que você atua como se fosse o único a deter a legitimidade para discutir a Marcha. O que você tem a dizer sobre isso? Como se conformou o campo político que marchará sobre Brasília no dia 16 de novembro?

Há um campo político, que preza a autonomia e o protagonismo negro e que vem se conformando desde tempos imemoriais. Se não, como teríamos chegado até aqui? A tarefa designada ao Irohin, pelas entidades presentes à reunião de 3 e 4 de julho no Manhattan, está sendo cumprida. O Ìrohìn e o EnegreSer compõem a secretaria–executiva da Marcha. Outra coisa é o preço que se tem de pagar, num quadro de relativa estagnação, quando se tem iniciativa política.

Embora quem é realmente ativista do movimento negro saiba que o que está em cena são duas visões políticas diferenciadas de luta anti-racista, a que poderia ser atribuída essa necessidade esquizofrênica de algumas pessoas tentarem impor uma centralidade na pessoa de Edson Cardoso, e de forma mesquinha tentam encobrir o protagonismo de expressivos setores das artes, da cultura, da política, de lideranças populares de diferentes movimentos sociais e das mulheres negras na Marcha do dia 16?

Já respondi acima sobre a fulanização como estratégia de desqualificação das ações do Movimento Negro. E a sua pergunta já embute a resposta, creio eu. Mente-se deliberadamente como forma de ação política para não permitir a realização de um ato coletivo que envolve entidades de todo o país. Desinforma, confunde e despolitiza. E cria a figura do bode expiatório etc. Há ainda o sucesso do jornal Ìrohìn, com 10.000 exemplares e mais de quatro mil assinantes em todo o Brasil, fazendo circular informação e estimulando o senso crítico. Isso eles não suportam.

Em linhas gerais quais as organizações e/ou lideranças que estão no campo de coordenação e de força política da Marcha do dia 16? E o que tem significado que cerca de 90% ou mais das organizações, expressões políticas e lideranças de mulheres negras estejam apoiando o dia 16?

Há grandes coletivos, como o Fórum de Entidades Negras do Maranhão, de Recife, de Mato Grosso do Sul, o Coletivo de Entidades Negras da Bahia, há o Fórum de Mulheres Negras do RS, o Fórum de Ituiutaba e o de Uberlândia, o Coletivo de Goiânia, o de Teresina, a Articulação Nacional de Mulheres Negras, blocos afros como o Ylê Ayiê e o Olodum , entidades de peso e tradição, o Geledés, a Casa de Cultura da Mulher Negra, o Ceert, o Criola, o CCN, o Kwanza, o Coisa de Negro, o Ceafro, o Erêgege, coletivos organizados em dezenas de municípios do interior de São Paulo , estudantes do EnegreSer e de outros coletivos universitários, padres, bispos e diáconos negros do Instituto Mariama, terreiros de Candomblé e Umbanda, ufa, estou deixando gente de fora. Nossa coordenação é aberta à participação das entidades. Nossa próxima reunião será nos dias 22 e 23 de outubro, em Brasília.

A participação das mulheres negras é, sem dúvida, expressiva. Mas é assim no dia-a dia das entidades. Eu edito um jornal e a participação das mulheres é, de longe, superior à participação masculina. As mulheres negras são responsáveis não apenas pela coordenação das principais ações, mas elaboram mais no Movimento Negro. A marcha do dia 16 é uma iniciativa política de Movimento Negro, parece-me natural, portanto, a predominância das mulheres. São lideranças fortes: Sueli Carneiro, Alzira Rufino, Fátima Oliveira, Jurema Werneck, Cida Bento, Silvany Euclênio, Cidinha da Silva, Wania Sant”Anna, Vanda Sá Barreto, Mônica Oliveira, Alda Regina, Luciane Ribeiro, Conceição Leal , Raimunda Guedes, Maria Conceição e tantas outras. Estou omitindo muita gente. Por aí você vê porque a turma do dia 22 me escolhe como saco de pancadas, eu sou o elo mais frágil.

O expressivo apoio do feminismo negro e das mulheres negras em luta teria alcançado no Brasil um estágio de maior maturidade política que o movimento negro em geral, no sentido de que na prática se demonstram senhoras absolutas de suas autonomias políticas? Há que analise assim... O que você acha? Sem dúvida estamos diante de um fenômeno político que exige reflexão e do qual devermos tirar lições.

Penso que devemos considerar a questão das condições materiais, da superexploração. Há ainda um peso histórico diferenciado: a ativa participação das mulheres na construção de estratégias de sobrevivência que permitiram que chegássemos até aqui. Há também abismos na escolaridade. Seja lá como for, parece haver uma disposição diferenciada para a luta política. Nesta conjuntura isso é muito evidente. A Marcha do dia 16 é uma Marcha que vai sendo construída com o predomínio das mulheres negras.

“Estamos na Marcha por nossa própria conta” é um lema/argumento das organizações e pessoas que estão buscando recursos fora do governo federal (em atividades próprias, no âmbito dos governos estaduais e municipais, da cooperação internacional, etc) para garantir a realização da Marcha do dia 16. Todavia setores da Marcha do dia 22, explicitamente subordinados politicamente ao governo federal, têm acusado que há “dinheiro estrangeiro” assegurando a Marcha do dia 16. Você poderia analisar o significado político disso? Trata-se de algo que poderia ser considerada uma “acusação” que fere alguma moralidade, ou mesmo consenso ético, na medida em que a atuação da cooperação internacional junto aos movimentos sociais em nosso país é legalizada?

Já falaram em dinheiro de Bush, em dinheiro da Ford. Depois passaram a dizer que a marcha é do PSDB. Nós editamos um jornal com recursos da cooperação internacional. Esta informação está no expediente da publicação, não é segredo. Estamos trabalhando para colocar nosso produto no mercado, nas bancas. Temos inteira liberdade editorial, acredite se quiser. Qual o significado político da acusação leviana e falsa? Parece-me que é atingir a legitimidade da proposta. Querem fazer crer que a proposta da Marcha seria menos legítima, aos olhos dos hipócritas, se fosse financiada com recursos da cooperação internacional. Isso me parece desespero político. Eu já escrevi que eles estão, por medo de seus superiores, fazendo transferência. Não têm coragem de questionar suas cúpulas partidárias e transferem acusações sobre corrupção para o Movimento Negro. Freud explica.

Como você pensa o pós-marcha? O que pode resultar disso tudo?

A definição de um campo de Movimento Negro, livre de injunções partidárias e outras. Acredito que não vamos esperar Zumbi+ 20 para fazer articulações nacionais e pressionar com a contundência necessária as diferentes instâncias de governo. Vimos quem não pôde seguir em Nova Orleans, aqui não é diferente. Se quisermos seguir na direção de um futuro, se pensamos em seguir como um povo, devemos nos apressar. Após a marcha eu vejo como inevitável uma maior radicalização nas ações do Movimento Negro. Com a marcha temos chances de aprovar o estatuto, de forçar o debate sobre segurança pública de uma ótica que leve em conta o extermínio da população negra, impulsionar a 10.639 e equacionar de uma vez a questão dos quilombolas.

Você acredita que haja por parte de setores do governo uma ação orquestrada para desastibilizar a Marcha do dia 16? E junto com isto, você crê que a pauta principal do dia 16 configura o que os detratores da Marcha do dia 16 afirmam que ela uma espécie de "Fora Lula", ou se a consigna das reparações, que é a “pedra de toque” da Marcha do dia 16 deixa o governo federal em maus lençóis? E por quê?

Não podemos provar nada. No ano passado, a Abin mostrou nos jornais sua grande preocupação com as atividades previstas para 2005. Temos a experiência de 1995. Era um governo do PT, o governo Cristóvão, e a P2 não saiu de nosso pé. Soubemos um ano depois com a abertura de alguns arquivos no chamado “escândalo da P2”. Algumas intrigas e boatos podem ter origem em trabalhos de inteligência e contra-informação. Somos uma presa fácil para a circulação de intrigas desqualificadoras. A coisa do “Fora Lula” não pegou, eles vão ter que inventar outra. Acho que a reparação assusta. Somos o movimento social que mais faz referências à história. Está tudo aberto. Vamos chegar de novo com Zumbi e mais de trezentos anos de história. Há um dano causado e é crescente a consciência do direito ao ressarcimento. Se não pode pagar o principal, paga os juros e cria o Fundo de Promoção da Igualdade Racial. Na última manifestação de “agricultores”, a turma botou os tratores na Esplanada e levou três bilhões do Fundo de Amparo ao Trabalhador.

É possível delinear um panorama de como está a organização da Marcha Zumbi +10 nos estados e quanto de gente você acha que poderá estar em Brasília no dia 16?

Nos últimos dias, o telefone do Irohin tem tocado mais intensamente. A agitação cresce nos estados, Olodum e Ilê confirmaram presença. Temos condições de colocar 30.000 pessoas na Esplanada, uma manifestação expressiva. Já solicitamos audiência ao presidente da República, ao presidente da Câmara dos Deputados e ao Ministro da Justiça.

Em entrevista publicada no Afropress e reproduzida no blog da Marcha Zumbi +10, Frei David, da Educafro, embora ressalte que “A comunidade negra, assim como qualquer grupo humano, tem o direito de ter posições divergentes entre si. O fato de sermos negros não nos 'bitola' a termos um só pensamento e um só interesse” e que “O movimento negro maduro sabe-se plural”, faz uma espécie de desabafo, mas que também pode ser interpretado como uma acusação que “Na verdade, a Educafro é a favor que o interesse público, do povo negro, esteja acima de interesses de pessoas ou de grupos. Nas mais de 10 difíceis reuniões que aconteceram no MEC e na Câmara Federal, para debater as ações afirmativas/cotas, apesar dos nossos apelos, nenhum dos líderes do dia 16 ou do dia 22 se fez presente ou enviou pessoas para ajudarem na luta”. É possível você dialogar um pouco com tais opiniões do Frei David?

Não entendi, francamente. Não sei como resolver as dificuldades de diálogo do frei com as lideranças negras a que ele se referiu. Ele defendeu primeiro uma concentração na rodoviária, seguida de uma passeata até o setor bancário. Segundo o frei não deveríamos cobrar nada de Lula. Depois, disse que tinha duas e ele não ia a nenhuma. Depois, ninguém ouve os seus apelos. Francamente, não entendi.