Marcha Zumbi +10

Espaço para divulgação da Marcha Zumbi +10, que ocorrerá no dia 16 de novembro de 2005, junto aos meios de comunicação, militância, mundo acadêmico entre outros.

10.19.2005

Marcha Zumbi +10 – Protesto e Autonomia, ou que se guardem os tubinhos e terninhos


Por Wania Sant’Anna

Fizemos, como há séculos, a parte boa da história. No último século, nenhum outro segmento organizado da sociedade civil brasileira logrou instituir uma data nacional de protesto e reclame à consciência nacional – nenhum. Somos únicos e absolutos!

O 20 de Novembro é uma realização social e política negra e uma realização política de dimensão incomparável. Incomparável porque retorna à história ancestral de homens e mulheres que, escravizados, não perderam o senso de dignidade e, portanto, lutaram como puderam para manter um ideal máximo: a liberdade! Nenhum outro sentimento pode ser mais caro ao ser humano do que o exercício de sua liberdade, a liberdade de sua comunidade, a liberdade de realiza-se como ser humano.

Talvez tenha sido por isso que, nessas últimas três décadas – período que marca a organização política contemporânea da população afro-brasileira – poucos ousaram diminuir a importância e o valor do Quilombo dos Palmares e suas lideranças. Poucos resistiram a idéia de render-lhes as justas homenagens e relembrar sua história como merecedora de todas, todas as glórias. Palmares e outros quilombos são na história do Brasil o que há de melhor a relembrar como resistência e exemplo de dignidade. Palmares e os outros quilombos são o que há de melhor para não deixar esquecer sobre a história da escravidão no Brasil.

Se Palmares e outros quilombos fizeram a sua parte, cabe a nós, na atualidade, fazer a nossa. Palmares e os outros quilombos foram, ao seu tempo, protesto. Cabe a nós relembrar-lhes a história e manter viva a idéia e o ideal de protesto – comemoração/protesto. E, na minha opinião, é isso que representa ocupar, em protesto, as ruas para sua justa homenagem.

Encontros, seminários, conferências, audiências, assinaturas de planos, acordos e protocolos não são protestos. Têm importância e valor, mas não são protestos. Manifestações públicas são protestos e parece bastante transparente que os afro-descendentes no Brasil têm motivos, de sobra, para protestar.

No caso da Marcha Zumbi +10 – definida para o dia 16 de novembro – parece também bastante transparente que ela é resultado de uma decisão equilibrada e respeitosa de ativistas e instituições que, por muitos anos – ou toda a sua vida adulta, têm dado o melhor de si para que o preconceito, a discriminação racial e o racismo sejam banidos como prática da vida nacional – em todas as instâncias. Isso tanto é verdade que, na sua primeira reunião de organização (julho de 2004), ninguém (ativista ou instituição) ousou negar-lhe a importância e a necessidade. Ninguém ousou pensar que a Marcha não devesse ser feita no mesmo local de 10 anos atrás: na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. O que se passou e vem se passando depois são as disputas que, no mínimo, maculam o respeito que devemos manter por nossas decisões e história políticas.

Naquela ocasião, para refrescar a memória de muitos e informar aos demais, teve-se a preocupação de verificar a “folhinha”, dar-se conta que o 20 de novembro, em 2005, aconteceria em um domingo e que, neste caso, o ideal era realizar uma Marcha em data anterior ao Domingo 20 de Novembro. Agora, quando somos chamados a tomar posição, parece digno, não deixar passar, literalmente, em branco as decisões tomadas em uma reunião tida, ninguém duvidou, respeitável e responsável. Respeitável e responsável porque foi convocada, exclusivamente, para este fim, para esta finalidade. Respeitável e responsável porque, tendo esta finalidade, foi assim informada ao país e, em especial, às organizações e ativistas da luta anti-racista no Brasil.

O nível de observância e críticas lançadas sobre essa iniciativa, especialmente às instituições e ativistas dedicados a sustentar o dia 16 de novembro como data ideal para a realização da Marcha Zumbi +10, marcará a todos nós por alguns anos. Veladas ou diretas, a desqualificação, as ameaças e os boicotes foram lançados de forma a construir um cenário de terra arrasada. Não por acaso, transparece, restando menos de 30 dias para a sua realização, a marca forte da autonomia como um dos pilares éticos da Marcha Zumbi +10 no dia 16 de novembro. Autonomia frente ao quê?

Autonomia como direito fundamental à organização da população afro-brasileira para a defesa exclusiva dos seus interesses. E por defesa exclusiva sublinha-se a insubordinação a qualquer outro interesse de grupo e/ou problemática. Se para a população afro-brasileira, como bem sabe a militância anti-racista, o preconceito, a discriminação racial e o racismo são os entraves mais essenciais à realização dos seus direitos humanos – e, portanto, obstáculo à sua cidadania plena – não há porque se subordinar a qualquer outro interesse de grupo e/ou problemática. Então, autonomia frente a qualquer insidiosa tentativa de diminuir esse ideal, e macular esse pressuposto ético fundamental à luta anti-racista.

Não fossem todos esses os motivos para me convencer da justeza do dia 16 de novembro como a data de realização da Marcha Zumbi +10, há meses um outro motivo se somou. Dezesseis de novembro é data ideal para dizer ao país, à nação, que a República que temos hoje está longe, muito longe, de ser a Nossa República. A República proclamada em 15 de Novembro de 1899 traz, para a população afro-descendente no Brasil, a mesmíssima seqüela do dia 14 de maio de 1888 – o não-lugar, a desqualificação e a desclassificação da dignidade afro-descendente. Povo forte, transformado em estorvo. Povo criativo, transformado em folclore. Povo forte, eternamente lembrado como ex-escravo e, jamais, tido como escravizado. Povo levado a ter vergonha de seu passado, de sua origem. Povo constantemente submetido às práticas insidiosas de rejeição – um problema, sempre; jamais, a solução.

Na versão século XXI de solidariedade e engajamento às causas sociais, é inimaginável não desfrutar da imagem de uma menina ou um menino negro beneficiados com a melhor ação social do momento. Fica então a pergunta que não quer se calar: o que fariam as boas almas nacionais, não fosse essa porção inestimável de pobres pretos para cuidar e, assim, sentir-se bem e realizados em seu clichê de “responsabilidade social”? País inimaginável esse que, ainda na pobreza, possamos dar aos “bem sucedidos” algo mais “elevado” que a sua satisfação material, damos-lhes, também, a “satisfação moral”.

País inimaginável esse que, para obter o que nos seria óbvio como direito, como cidadãos e cidadãs, tenhamos que nos preocupar em atender, também, aos interesses da população branca e pobre. Em duas décadas de luta pela desagregação dos indicadores sociais por “cor/raça”, ninguém lembrou de justificar a esta desagregação em nome dos interesses da população branca e pobre. Fizemos, assim, mais uma graça: descobrimos, com os nossos esforços (e intermitente ridicularização de nossas propostas) que, no Brasil, existem, também, brancos pobres. Portanto, também aqui, na situação de pobreza, esses não devem ser esquecidos – ou melhor, precisam ser, forçosamente, contemplados. É justo? Sim, é justo.

O que não é justo é que os benefícios sejam colhidos sem que sejam nomeados os autores das propostas. O que não é justo é que passemos, ainda que na situação de pobreza extrema, a ter que cuidar do bem-estar de todos, quando do nosso bem-estar só se têm ocupado alguns poucos – notadamente, nós os pretos, os ativistas anti-racistas, os chatos, esses perigosos personagens unicamente interessados em instituir o racismo ao contrário, os que não compreendem, por pura ignorância, o valor de viver em um país onde o racismo é antes, e acima de tudo, “cordial”. O princípio da distribuição, curioso, só é lembrado quando parece haver, no fundo, algo que possa elevar, de fato, a condição dos afro-descendentes. E isso não é nada justo!

Enfim, 16 de novembro, como protesto, como autonomia, como direito inalienável à livre organização da população afro-brasileira. Enfim, 16 de novembro como expressão de nosso direito de viver em dignidade, de exigir seguridade às nossas famílias, às nossas comunidades, de respeito à nossa ancestralidade. Dia 16 de novembro pela Vida, pela Ética e pela Verdade Histórica.

Os tubinhos e os terninhos – fotos e sorrisos – são para outra ocasião, agora é chão!

*Historiadora, 44 anos, feminista e ativista negra. Colaboradora do Jornal Irohin e presente à primeira reunião de organização da Marcha Zumbi+10 (Brasília, julho de 2004).

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