Marcha Zumbi +10

Espaço para divulgação da Marcha Zumbi +10, que ocorrerá no dia 16 de novembro de 2005, junto aos meios de comunicação, militância, mundo acadêmico entre outros.

11.20.2005

Tolerância e a Marcha anti-racismo

Roseli Fischmann


Pior que a discriminação, somente a dificuldade que se tem de enfrentar a sua mera realidade e existência. A denegação dos processos de preconceito e discriminação é aparentada da ignorância, da hipocrisia e do cinismo, em doses distintas, freqüentemente distribuídas de forma desigual e irregular por entre diferentes grupos e pessoas no interior desses grupos, muitas vezes ocorrendo em diferentes momentos.

A violência, ensinou Hannah Arendt, eclode lá onde o poder se enfraqueceu. Porque o poder, segundo a filósofa, é a capacidade de agir em concerto, desafio para o ser humano competitivo, mas conforto para o ser gregário. Como somos um pouco de cada coisa, construir o poder em concerto é construção cotidiana.

Articulada a partir de organizações formais ou informais, trata-se de construção de maturidade e decisão. A ação política que a internet propicia, por exemplo, particularmente nas formas inovadoras dos blogs, é excelente exemplo de “inteligência coletiva” (ao gosto de Pierre Lévy), porque vai compondo diferentes pontos de vista, deixando entrever extremos e nuances, entre o criativo e o irado, o que carrega consigo, exprime e vitupera a ira contra o outro, seja qual for sua opinião, dúvida e criação. Como compatibilizar? Como repudiar o inaceitável? Como promover o que se faz pelo bem comum? Esse exercício será tão mais inteligente, quanto mais em prol da democracia – e vamos passando para o campo da consciência.

Por isso vale lembrar que em 16 de novembro celebrou-se o Dia Mundial da Tolerância. Data estabelecida pela ONU, via UNESCO, em 1995, traz à reflexão o quanto precisamos humildemente reconhecer que, com mais freqüência do que gostaríamos, hesitamos até em aceitar a mera existência do outro, qualquer outro que apenas pense diferente de nós, nem diferente precisa ser (e como todos somos assim, diferentes entre o “nós” complexo que formamos).

A prática demonstra como excluímos por tantas razões e os movimentos de resistência exemplificam a chama da dignidade humana que jamais se extingue. Como no próprio Dia Mundial da Tolerância, entidades do movimento negro marcharam sobre Brasília, a Marcha Zumbi +10, junto com todos nós que apoiamos o trabalho em prol da efetiva igualdade de todos os brasileiros e que hoje celebramos o Dia de Zumbi, herói nacional, Dia Nacional da Consciência Negra. . É o caminho que se faz a cada dia, em cada gesto em que recuperamos o terreno que perdemos ao discriminar, mesmo quando o fazemos sem perceber, pelas armadilhas postas por uma cultura em que estamos mergulhados que, embora renegue o racismo e a discriminação, efetiva-se pelas esquinas da vida.

Relato das lideranças e participantes dá conta que tentaram agendar antes com autoridades para que os participantes da Marcha fossem recebidos em audiência. Políticas anti-racistas são tema transversal de política pública, por isso requerem atenção governamental ampla. Acolheram de pronto a solicitação, a Ministra Nilcéia Freire, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, e o Ministro Vantuil Abdala, do TST, agendando o encontro com antecedência. O Presidente da Câmara dos Deputados Aldo Rebelo acolheu o pedido na véspera, mas quanto aos que não haviam se pronunciado, como o Ministro da Justiça, os participantes da Marcha conquistaram audiência no grito e na garra, debaixo de sol e de chuva, sem bandeira de partido que abrisse alas.

A conquista da “voz rouca das ruas” incluiu uma hora de conversa com o Presidente Lula, que súbito apareceu, o que torna público um dos motivos pelo qual não acompanhou o depoimento do Ministro Palocci naquela tarde. Como declarou, “estava trabalhando” – e nessa uma hora, de certo, foi o trabalho mais relevante que poderia ter feito, junto a representantes de um grupo humano que por mais de quatro séculos tem ajudado a construir este país, três deles em regime de escravidão, e jamais foi reconhecido. Ao contrário, a chamada “abolição” cedo deixou de contemplar o estatuto da cidadania a que os afro-descendentes têm pleno direito, e mais, o que tem havido, é abandono ou tratamento insuficiente das políticas públicas de promoção de toda forma de cidadania dos negros.

Se o pluralismo de opiniões é sempre bem vindo, nesse caso a vitória de um movimento que se colocou na rua para manifestar-se por tema que diz respeito a um dos pilares da democracia, a igualdade de todos cidadãos e todas cidadãs, demonstrou que há um espaço de dignidade que se faz respeitar, pelo não-atrelamento a slogans e identidades oficiais ou oficializadas, facilitadores de beneplácitos, sejam quais forem eles – os slogans, as identidades e os beneplácitos. Há, sim, política e poder (em concerto) fora dos partidos (que pedem conserto): é preciso apenas ter competência.

Porque a Marcha Zumbi + 10 trouxe a recordação do que faz a discriminação, do individual em que se constatam ofensas e outros gestos simples, mas efetivos na anulação do outro – como o ostracismo cotidiano, em que negamos a quem conosco convive o mero direito de ser reconhecido como ser humano – às manifestações coletivas de discriminação, racismo, xenofobia e intolerância, muito temos o que trabalhar em nós, conosco, por nós.

A consciência humana histórica, livre da manipulação que pode haver a cada momento, ou no plano nacional a consciência que é supra-partidária, articula declarações, convenções, pactos. Na perspectiva do que tem conquistado, propusemos a este Blog do Noblat abrir espaço para a divulgação de instrumentos internacionais de direitos humanos que são relevantes não apenas como construtores da democracia no plano político nacional, mas em nosso cotidiano. Assim, porque merecemos de nós a tentativa de alcançar para todos e cada um o que a consciência humana já ousou pronunciar – projeto e destino. Se o blog serve à construção da inteligência coletiva, pode servir também à construção e elaboração histórica da consciência coletiva, auto-convocada – essa a idéia central da proposta.

Assim, abrimos hoje a série - Noblat, neste blog, e eu, neste artigo –, e este link convida a visitar a Declaração Mundial dos Princípios sobre a Tolerância, patrimônio da humanidade. Outros instrumentos virão visitar o blog. Coletivamente vamos construindo também este pedaço de inteligente consciência coletiva, a amparar a reflexão política e a construção cotidiana da democracia. Que seja prática e ação.

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Roseli Fischmann é pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da USP e foi articuladora e coordenadora geral do Seminário Internacional “Ciência, Cientistas e Tolerância”, em 1997, momento em que se iniciou a Rede UNESCO das Américas e Caribe para Tolerância e Solidariedade, com sede na USP, à qual vinculam-se cientistas das mais diversas áreas.