Marcha Zumbi +10

Espaço para divulgação da Marcha Zumbi +10, que ocorrerá no dia 16 de novembro de 2005, junto aos meios de comunicação, militância, mundo acadêmico entre outros.

11.18.2005

Crítica ao governo, marcha pede ações mais efetivas

Jonas Valente - Carta Maior 17/11/2005

Reivindicações por mais recursos financeiros e políticas mais efetivas para a superação da desigualdade racial marcaram a marcha Zumbi+10. Recebidos pelo presidente Lula, manifestantes consideram ações do governo "insuficientes".


Foto Rebeca Duarte





Brasília - Com muita percussão e roupas coloridas, cerca de 800 militantes de movimentos sociais que lutam pela causa das populações negras ocuparam nesta quarta-feira (16) a Esplanada dos Ministérios. A mobilização ganhou nome de Marcha Zumbi+10 e teve como objetivo entregar uma pauta de reivindicações com medidas para a superação da desigualdade racial a autoridades do Executivo e Legislativo . O nome é uma referência à Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo e pela Cidadania, realizada há exatos 10 anos, quando diversas caravanas saíram de todos os locais do país para entregar uma agenda de medidas ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. No entanto, diferentemente da manifestação que completou uma década, esta não foi uma mobilização do conjunto do movimento negro.

Há alguns meses, divergências relativas à avaliação sobre o governo Lula provocaram um racha dentro das organizações que preparavam a mobilização, o que gerou duas marchas. A manifestação realizada ontem foi promovida por entidades que se autodenominam "autônomas" em relação ao governo e aos partidos políticos, que decidiram sustentar críticas mais fortes em relação à gestão de Lula. A postura mais questionadora foi amplificada pela notícia, no início do dia da Marcha, de que o governo não receberia os manifestantes, o que elevou o tom das críticas.

"Qual é a idéia de quem está no governo? Movimento social é aparelho, movimento social é para controle partidário. Nós do movimento negro não temos esta concepção, nós temos autonomia, não aceitamos a partidarização", criticou Edson Lopes Cardoso, editor do jornal Irohin e um dos coordenadores da marcha. Segundo Lopes, a vinculação de militantes de organizações ligadas à segunda marcha, que ocorre no dia 22, com partidos políticos (principalmente os governistas PT e PC do B) impediram uma pauta e uma marcha unificada. Estas organizações teriam tensionado para baixar o tom das críticas ao governo.

O pedido não foi atendido, o que ficou evidente nas falas dos dirigentes da marcha. "Não vamos aceitar a inconseqüência e a demagogia de lançar um programa chamado "Brasil Sem Racismo" no período eleitoral e não desenvolver efetivamente nenhuma política para superar as desigualdades raciais no Brasil", disse Cardoso. "Para nós, é insuficiente a criação de um órgão de governo decorativo como a Seppir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial]. Ela tem um simbolismo especial. Pela primeira vez o governo brasileiro cria um órgão para nós, mas é desempoderado, não tem dinheiro, não implementa políticas, não responde às nossas necessidades", completou Fátima Oliveira, também da Coordenação da Marcha.

Segundo Cardoso, a situação da Seppir é muito ruim, pois o orçamento é irrisório, cerca de R$ 14 milhões, e ainda é gasto somente em custeio. "As companhias aéreas e a rede hoteleira agradece", cutuca, fazendo referência aos custos com passagens e estadias. Outra crítica dos militantes foi a atuação do governo frente ao Estatuto da Desigualdade Racial, que está em tramitação no Congresso. Para os coordenadores da Marcha, o Planalto promoveu uma aprovação ‘a toque de caixa‘ no Senado e suprimiu a parte mais importante, os mecanismos de financiamento para políticas voltadas à superação da desigualdade racial.

Abismo social

A urgência dos militantes pode ser demonstrada por meio de números. Segundo levantamento do economista e professor da UFRJ Marcelo Paixão, se observado um corte de cor no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) brasileiro (0,747), é possível verificar uma diferença considerável entre o índice dos negros (0,68) e o dos brancos (0,796). Outros dois bons exemplos são os dados de educação e de trabalho divulgados em 2002 referentes ao Censo de 2000, que revelam a persistência da desigualdade racial no país.

Enquanto a taxa de analfabetismo entre os brancos é de 8,3%, na população negra atinge 21,5%, quase duas vezes mais quando comparada à média nacional de 12,9%. O topo da hierarquia no trabalho continua pertencendo aos brancos - apenas 1,67% dos negros se declararam empregadores, contra quase 80% da população branca. Entre os empregados, negros e pardos são quase a maioria, somando 43% da população economicamente ativa.

Soluções

Trazer alternativas para resolver essa situação foi o objetivo da Marcha. "Viemos apresentar à sociedade uma agenda de resolução dos problemas do país, o que diz respeito também à população negra. O desenvolvimento do Brasil passa pela comunidade negra, passa pela inserção, pela inclusão dos 90 milhões de negros no país. Esta inclusão não é apenas na cultura, no esporte, mas é também na educação, no saneamento, na política, nas formas de trabalhar", afirmou João Jorge, presidente do Olodum.

Para ele, o desenvolvimento do país passa por reconciliar a nação, que hoje é partida entre europeus, indígenas e africanos, sendo necessárias para isso a realização de políticas afirmativas voltadas aos afro-descendentes e às populações indígenas. A equação ‘pobreza e desenvolvimento‘, defendeu Jorge, não pode mais ser resolvida por políticas universalistas, e citou como exemplo ações assistencialistas como o Bolsa Família e o Programa Universidade Para Todos (Prouni). "Apesar desses programas, o país não conseguiu incluir 90 milhões de brasileiros. É um país próspero para os brancos, mas possui uma áfrica sub-desenvolvida muito pior do que países como África do Sul, Zimbabwe, Quênia e Egito", disse. Segundo Edson Lopes, a Marcha tem como bandeira principal o direito à vida, pois a população negra passa hoje por um processo de ‘extermínio‘.

De acordo com uma pesquisa sobre violência produzida pela Unesco citada pelo militante, foram registrados no Brasil no ano passado cerca de 14 mil homicídios entre jovens de 12 a 19 anos, dos quais 70% tiveram como vítimas jovens negros. Outra informação alarmante citada por Lopes é o registro de 631 assassinatos em Salvador de janeiro a setembro deste ano, "a maioria absoluta de população negra". Uma das principais propostas apresentadas pelos organizadores da Marcha para superar essa realidade foi a criação de um fundo de promoção da igualdade racial, que estava previsto na redação original do Estatuto da Igualdade Racial.

"Fizemos um cálculo a partir de três indicadores básicos: saneamento, habitação e educação, e chegamos à cifra de R$ 67 bilhões. Você pode dizer ‘ah, mas é muito dinheiro‘, mas acreditamos que é possível. Só o FAT [Fundo de Amparo ao Trabalhador] tem R$ 100 bilhões, e só serve à elite brasileira", disparou Edson Lopes. Segundo ele, o fundo poderia ser formado por verba pública e também por outras fontes, como recursos privados ou até mesmo dinheiro oriundo de loterias. "É um volume de recursos com o qual o Estado brasileiro tem toda condição de arcar, desde que suas prioridades sejam revistas, tendo como norte o reconhecimento da questão racial em toda a sua plenitude e a decorrente necessidade de políticas públicas efetivas direcionadas para a população negra", comentou Fátima de Oliveira, também da coordenação da Marcha, lembrando que o valor proposto ao fundo equivale a cerca de 78% do superávit fiscal acumulado de janeiro a setembro de 2005.

Reunião com o presidente

A proposta do fundo e outras foram levadas a várias autoridades ontem, inclusive ao presidente Lula. Enquanto quase mil integrantes da Marcha celebravam a iniciativa em um palco montado na esplanada, uma comissão percorreu ministérios, o Congresso e chegou de noite ao Planalto. A primeira reunião foi com a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Nilcéia Freire. À ela foram entregues reivindicações de ações voltadas à resolução de problemas das mulheres negras, principalmente medidas para a legalização do aborto, uma das principais causa de morte destas mulheres. Em seguida, a comitiva seguiu para a câmara e se encontrou com o presidente da casa, Aldo Rebelo (PCdoB-SP).

Na audiência, os militantes ressaltaram a importância da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, destacando o papel da Câmara na inserção da proposta do fundo de promoção da igualdade racial no texto vindo do Senado. Aldo Rebelo demonstrou preocupação de que isso retardaria a aprovação do projeto. "Não sei se não seria melhor plantarmos a semente, aprovando o texto como veio do Senado", sugeriu. Os representantes da Marcha discordaram de Rebelo. "O movimento negro, que já esperou tantos séculos, pode esperar mais. Quem tem pressa de votar é o governo", disse Fátima Oliveira, da coordenação da Marcha.

De noite, a comitiva finalmente recebeu a confirmação de que seria recebida pelo ministro da justiça, Márcio Thomaz Bastos, e pelo presidente Lula. De Thomaz Bastos os militantes cobraram medidas para atacar os problemas do extermínio dos negros no país e da intolerância contra as manifestações de religiões de matriz africana. Foi proposta também a realização de uma campanha que teria como tema "direitos culturais são direitos humanos", cujo objeto seria a defesa do direito das populações negras a sua cultura, história e referências simbólicas.

Após a reunião com o ministro, a comitiva foi recebida pelo presidente Lula. Os militantes apresentaram um documento com uma série de comentários sobre as ações do governo e as pautas do movimento. Entre as reivindicações estavam a abertura de um diálogo entre movimento negro e o governo, a implementação efetiva da Lei 10.639 (que institui as disciplinas ‘história da África‘ e ‘cultura brasileira‘ no currículo do ensino fundamental e básico), e uma maior discussão sobre o Estatuto da Igualdade Racial, com destaque para a introdução de mecanismos de financiamento.

Segundo Cardoso, que esteve na audiência pela coordenação da Marcha, o presidente se mostrou sensível às reivindicações e prometeu avaliar com cuidado o documento entregue. Em relação à Lei 10.639, prometeu cobrar a implantação da norma do Ministério da Educação (MEC). O presidente também assumiu o compromisso de discutir com a base governista as demandas relativas ao Estatuto da Igualdade Racial. "Consideramos uma vitória a Marcha e a reação do governo, que até o início do dia não tinha confirmado a reunião mas depois decidiu nos receber", avalia Edson.